Brasil ainda está longe de cumprir compromisso com a ONU sobre trânsito
23/07/2018 | Entrevista
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pelo organismo internacional, a chamada Agenda 2030, elevam o papel da mobilidade urbana para a melhoria da qualidade de vida e redução de índices de acidentes, mas especialista alerta que o Brasil ainda está longe de alcançar as metas ambiciosas às quais se propôs
No ano de 2015, as nações com representação na Organização das Nações Unidas aderiram a um pacto. Elas se comprometeram, por meio da Agenda 2030, a realizar uma série de ações para as pessoas, o planeta e a prosperidade. Por meio de seus chefes de Estado e de Governo e altos representantes, reunidos na sede das Nações Unidas em Nova York, entre os dias 25 e 27 de setembro daquele ano – no momento em que a Organização comemorava seu septuagésimo aniversário, os estados-membros concordaram em adotar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que definiram a nova agenda global de desenvolvimento, a ser buscada nos 15 anos seguintes. Esses 17 objetivos desdobraram-se em 169 metas que passaram a integrar acordos internacionais e orientar os planos de desenvolvimento nacionais dos países.
O Brasil é signatário desse conjunto de objetivos e metas nos mais variados campos, entre eles a mobilidade urbana. Mas não vai conseguir alcançar o salto proposto, segundo o mestre em Transportes Urbanos pela Universidade de Brasília (UnB) e técnico da Organização Pan–Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/ OMS) no Brasil, Victor Pavarino. Para ele, as metas ambiciosas assumidas pelo Brasil para a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011-2020, que foram reafirmadas nos ODS, dificilmente serão atingidas com as medidas atuais, voltadas apenas para o comportamento dos usuários das vias. Ele sugere ações ligadas às políticas de mobilidade, das quais o transporte público é chave. Confira essa e outras opiniões na conversa que a Revista NTUrbano teve com o especialista:
Quais são as principais questões que influenciam no problema do trânsito, que fazem o número de acidentes ser tão alto?
De forma mais imediata, poderíamos citar os fatores de risco clássicos para os índices de lesões e mortes no trânsito: velocidade excessiva; bebida e direção; desuso de capacete para motos; desuso de cinto de segurança e de mecanismos de retenção para crianças, além dos fatores considerados “emergentes” pela OMS, como a direção distraída (particularmente o uso de smartphones ao dirigir) e condução sob efeito de substâncias psicoativas.
Contudo, a questão não pode ser compreendida fora dos contextos mais amplos que a precedem e, em boa parte, determinam a prevalência desses fatores. A compreensão da mobilidade contemporânea e seus problemas, especialmente nos países em desenvolvimento, remete-nos aos seus processos de urbanização e desenvolvimento econômico, em particular aos aspectos que definiram a hegemonia de modelos de transporte fundamentados nos modos individuais motorizados. Esses modelos, por terem imposto espaços majoritariamente orientados (ou adaptados) para carros, depararam-se também com as limitações inerentes aos próprios países, seja na previsão e manutenção da infraestrutura, seja na capacidade de gestão do trânsito.
A ocupação do espaço viário, nesse sentido, reproduziu as assimetrias e iniquidades dos próprios países. Disso advieram ambientes de circulação excludentes, plenos de contradições, nos quais predominam sistemas precários, em que o tráfego motorizado compartilha espaços com modos mais vulneráveis de maneira perigosa.
O Brasil, em boa medida, se inscreve nesse processo histórico e tem nos seus índices o reflexo dessas contradições, principalmente a partir das últimas décadas do século passado. As duas crises mundiais do petróleo (anos 1970) e o desaquecimento da economia nacional na década de 1980 represaram, em alguma medida, as demandas por mobilidade. O crescimento econômico observado nos anos seguintes, no entanto, expôs a precariedade da infraestrutura e dos serviços de transporte, e o quadro agravou-se com as políticas de forte incentivo ao transporte individual motorizado.
Assim, se os comportamentos de risco remetem a componentes subjetivos (como atitudes, decisões pessoais), essas ações encontram campo e rebatimento em uma ambiência que favorece essas práticas. Uma via superdimensionada e mal fiscalizada, por exemplo, “convida” à velocidade. A percepção, ou certeza da impunidade, por sua vez, propicia infrações como a direção sob efeito de bebida, principalmente se a opção por transporte alternativo ao individual não for atraente.
A solução é a legislação? Faltam punições mais rígidas?
Embora operacionalizada por técnicos, a segurança viária é fortemente regida pela dimensão política, em seu sentido mais amplo. Poderíamos pensar o componente político que legisla, criando normas, e outro que gere a coisa pública nos órgãos executivos. No primeiro caso temos que, pelos critérios estabelecidos pela OMS junto à Colaboração das Nações Unidas para a Segurança no Trânsito (UNRSC, na sigla em inglês), a legislação brasileira para os principais fatores de risco cumpre com a maioria dos requisitos estabelecidos. Fica devendo apenas em relação a não ter limites de velocidade de no máximo 50 km/h em vias urbanas.
O problema – e parece haver consenso na comunidade de segurança viária a esse respeito – tem mais relação com o cumprimento efetivo das leis existentes. Nesse ponto, o componente político de gestão tem peso mais significativo, seja no que concerne à capacidade institucional dos órgãos de fiscalização, seja no que tange à decisão por resistir-se a empreender ações necessárias, mas que tenham custos político-eleitorais indesejáveis. No que concerne ao rigor da punição, é certo que penalidades irrisórias não intimidam infratores. Contudo, em regra, a percepção que alguém possa ser efetivamente autuado e punido é mais inibidora do que uma punição teoricamente mais rigorosa, mas que se mostre pouco provável de ocorrer.
“ESTRUTURANTE E ESSENCIAL PARA UMA INCLUSÃO EQUITATIVA E SUSTENTÁVEL. OU SEJA, MUITO MAIS QUE PROMOVER UMA MOBILIDADE MAIS SEGURA – O QUE POR SI JÁ É GANHO – O TRANSPORTE COLETIVO PROMOVE JUSTIÇA SOCIAL”.
Incentivar as pessoas a utilizarem o transporte público e não o carro pode ser considerada uma solução para essas questões de trânsito?
A migração – particularmente dos modos mais vulneráveis – para o transporte público é certamente desejável, afora os ganhos do ponto de vista ambiental e do coletivo. O fato de que no Brasil, segundo os dados do Ministério da Saúde para 2016, os usuários de motos e carros tenham representado, respectivamente, 55% e 11% dos mortos no trânsito e os que estavam em ônibus, menos de 1%, é eloquente.
No cenário brasileiro, o que precisa mudar para que a população seja atraída a usar o transporte público?
Melhorar a condição do transporte público é a resposta mais óbvia, mas há que lembrar que isso implica muito mais que os atributos dos veículos, sua frequência e acessibilidade. A opção pelo ônibus, por exemplo, tem relação com a qualidade dos percursos complementares ao trajeto. Por exemplo, a pessoa precisa se deslocar a pé ou de bicicleta até o ponto de ônibus, tanto no embarque quanto no desembarque, e de lá até o seu destino final. Há que ressaltar também que, nas cidades brasileiras acima de 60 mil habitantes, os deslocamentos de bicicleta e a pé somados aos deslocamentos por transporte público representam quase 70%, enquanto o transporte individual motorizado, responsável pelo percentual restante, tem para si cerca de 80% do sistema viário construído. Ou seja, mais que qualificar o transporte público, é preciso rever o modelo iníquo de distribuição do espaço viário.
De modo geral, qual o impacto dos problemas de trânsito para a sociedade?
Questões como os acidentes implicam custos socioeconômicos estimados entre 1% e 3% do PIB dos países, com impactos devastadores para os sistemas de saúde e de previdência, entre outros, afora o sofrimento que acarretam. O número de mortes no trânsito é apenas a ponta de um iceberg em que o conjunto de sobreviventes lesados e/ou permanentemente incapacitados tem proporção de 20 a 50 vezes maior.
Embora as lesões e mortes em acidentes possam ser a face mais visível dos impactos negativos dos transportes à saúde, o problema não se reduz a isso. Eles incluem, por exemplo, desde os efeitos das poluições sonora e atmosférica na saúde física até o isolamento social por espaços hostis à circulação. Uma série de evidências atesta efeitos adversos do ruído para a comunicação, audição e saúde cardiovascular, distúrbios de sono e irritação, indisposição emocional, prejuízos ao desempenho na escola e no trabalho, comprometimento na resolução de problemas e comportamentos agressivos.
O trânsito denso e as viagens longas também têm sido associados a níveis mais elevados de estresse e outras consequências para a saúde mental. Em áreas urbanas com crescimento desordenado, a depressão pode ocorrer com maior frequência. Em espaços urbanos projetados na escala apropriada para carros, desprovidos de infraestrutura ou segurança para deslocamentos a pé ou por bicicleta, a dependência do transporte motorizado leva a estilos de vida menos ativos, propícios ao sobrepeso e à obesidade, indutores de maior vulnerabilidade a enfermidades crônicas.
Os aspectos ligados às emissões veiculares merecem destaque, uma vez que o tráfego motorizado é a principal fonte de concentração de poluentes no nível do solo. A poluição automotiva associa-se com pelos menos seis das dez principais causas de morte em todo o mundo, e cinco entre as dez maiores causas de mortes prematuras e incapacitações, incluídos aí óbitos por enfermidades cardiovasculares, infecções do trato respiratório, doença pulmonar obstrutiva crônica e câncer de pulmão. Enquanto os efeitos dos traumas adquiridos em acidentes tendem a ser imediatos, os danos resultantes das poluições, vale ressaltar, implicam a manifestação de enfermidades de curso normalmente lento, prolongado e, inicialmente, assintomático.
O que são e qual a importância dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), também conhecidos como Agenda 2030?
Os ODS consistem, em sua essência, em uma importante declaração de inconformidade com as iniquidades no planeta, em especial com a pobreza e com desigualdades inaceitáveis. A experiência global demonstra – e isso é particularmente válido em relação à segurança viária – que os países que lograram melhoras efetivas definiram metas, divulgando publicamente seus progressos, como forma de manter ações focadas.
As metas provêm um meio de monitorar a extensão dos avanços e facilitar a cobrança pela sociedade, além de oferecerem oportunidade para ajustar o foco das atividades.
O que a ONU espera do setor de transporte público e das cidades em relação à segurança viária dentro da Agenda 2030?
Diferentemente dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que os sucederam em 2015, estabeleceram metas explicitamente voltadas para a mobilidade segura e sustentável. Mais que isso: consolidaram a relação essencial da segurança viária e das políticas de transporte. Isso fica explicito na meta 11.2 dos ODS que diz que, até 2030, deve-se proporcionar o acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos, melhorando a segurança no trânsito por meio da expansão dos transportes públicos, com especial atenção para as necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade: mulheres, crianças, pessoas com deficiência e idosos. Nada poderia ser mais direto em relação ao transporte público e à essência dos ODS, identificado no conceito de equidade.
Qual o papel do transporte coletivo e de uma mobilidade urbana bem planejada para a prevenção e redução dos problemas de segurança?
Entendemos seu papel como estruturante e essencial para uma inclusão equitativa e sustentável. Ou seja, muito mais que promover uma mobilidade mais segura – o que por si já é ganho –, o transporte coletivo promove justiça social.
Qual a contribuição que o transporte público pode dar para o alcance das metas assumidas pelo Brasil? Vai além da mobilidade urbana? Inclui quais áreas?
As metas ambiciosas assumidas pelo Brasil para a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011-2020, e reafirmadas nos ODS, dificilmente serão atingidas com medidas voltadas apenas para modelar o comportamento dos usuários das vias. É preciso agir nos determinantes da situação vigente, que estão radicalmente ligados às políticas de mobilidade, e nas quais o transporte público é chave.
VICTOR PAVARINO é Bacharel em Sociologia, Licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Humanas, e Mestre em Transportes Urbanos pela Faculdade de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB). Atuou em órgãos gestores de Transportes, Trânsito e Saúde em nível federal e estadual: no Centro de Pesquisas em Educação e Prevenção da Rede Sarah de Hospitais, no Centro de Estudos Interdisciplinares em Transportes da UnB. Foi Consultor da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde em Washington. É membro da Câmara Temática de Saúde e Meio Ambiente do Conselho Nacional de Trânsito e atua, presentemente, na Unidade Técnica de Determinantes da Saúde, Doenças Não Transmissíveis e Saúde Mental da Organização Pan–Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil em temas sobre segurança viária e mobilidade sustentável.
*Entrevista publicada na Revista NTUrbano MAI/JUN 2018.