Novo método de cálculo de custos dá mais transparência ao setor
22/12/2017 | Entrevista
Com o passar dos anos, várias modificações no serviço de ônibus coletivo ocorreram e, com isso, surgiu a necessidade de uma nova forma de calcular os custos do setor. As reinvindicações da população apontadas nas manifestações de rua em 2013, principalmente em torno das tarifas dos ônibus, foram o estopim para que entidades do setor buscassem um novo método de cálculo do serviço de transporte público para atender às demandas sociais e, ao mesmo tempo, às crescentes dificuldades financeiras das empresas operadoras.
Desde o início da década de 1980, a maioria das prefeituras brasileiras utilizava a Planilha do Geipot, a extinta Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes, para esses cálculos – uma metodologia defasada. Em agosto deste ano, após quatro anos de trabalho, a Associação Naciona de Transportes Públicos lançou, em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e com contribuições técnicas da NTU, uma nova planilha de cálculo dos custos do transporte coletivo que contempla a evolução e a complexidade do setor.
Entre os vários itens de composição desses custos estão a taxa de remuneração do capital e a taxa de remuneração do serviço. São pontos distintos e que precisavam ser tratados separadamente no novo método para atender às expectativas das empresas, dos órgãos gestores e da sociedade quanto a uma maior transparência nos cálculos.
Para apoiar no desenho da metodologia, a ANTP contou com a expertise de Fernando Fleury, doutor em administração pela USP e mestre em economia pela Fundação Getúlio Vargas. Com mais de 20 anos de experiência, Fleury foi um dos responsáveis por definir o método de cálculo dos riscos inerentes às operações de ônibus urbanos, peça-chave na correta definição da taxa de remuneração desses serviços e na elaboração de contratos com os órgãos gestores. Confira a seguir detalhes desse processo em entrevista exclusiva para a Revista NTU Urbano.
COMO SURGIU A IDEIA DE ALTERAÇÃO DA PLANILHA GEIPOT PARA MODERNIZAÇÃO DO MÉTODO DE CÁLCULO DOS CUSTOS DO TRANSPORTE COLETIVO?
Começou em 2013, na época das manifestações. A FNP (Frente Nacional de Prefeitos) entrou em contato com a ANTP (Associação Nacional dos Transportes Públicos) para fazer um processo de revisão da planilha tarifária de forma a modernizá-la e tornar o processo mais transparente. A partir desse contato foi formada uma comissão pela ANTP composta, principalmente, por gestores de municípios ou órgãos estaduais.
POR QUE E EM QUE MOMENTO VOCÊ PASSOU A CONTRIBUIR COM ESSE PROCESSO?
Essa discussão caminhou sem mim até 2015, quando se chegou a um impasse em relação à alguns indicadores, de remuneração do capital e de taxa de remuneração pelo serviço, que é o lucro da empresa. Era necessário compreender qual seria essa taxa de remuneração pelo serviço e como ela deveria ser fundamentada frente aos órgãos de controle. Eu comecei a trabalhar com modelagem de concessões, permissões e autorizações de projetos de mobilidade urbana há 20 anos. E de 2005 para cá tenho trabalhado com uma série de outros setores, não só com mobilidade urbana, mas também com rodovias, aeroportos, PPPs de escolas e centros administrativos. Então, por ter experiência de outras áreas, a coordenação da ANTP me convidou para ajudar nesse processo. Eu entrei para tratar desses dois pontos específicos: como trabalhar a remuneração de capital numa ótica mais moderna e a taxa de remuneração do serviço.
E DE QUE FORMA DEVEM SER TRATADAS E CALCULADAS ESSAS TAXAS?
Essas questões têm sido tratadas no âmbito da infraestrutura de uma forma mais ampla, inclusive pelos setores que estão mais próximos ao crivo do Tribunal de Contas da União (TCU), etc. Primeiro: tudo aquilo que é o resultado do acionista está incorporado à remuneração do capital. Então, se eu disser que o lucro está embutido dentro da remuneração do capital que eu emprego, dentro de uma hidroelétrica ou da construção de uma rodovia, isso é bastante justo, porque a parcela de prestação do serviço em si é uma parcela muito pequena, eu não tenho que me preocupar muito com a remuneração do serviço porque ela é 10%, 5%, do que é efetivamente a remuneração que eu tenho, e a forma como isso sempre é tratado é assim: a remuneração total de capital está dividida entre a parcela de remuneração livre de risco mais um prêmio pelo risco. Essa primeira parte é o que pode ser chamado de custo de oportunidade, ou seja, o detentor de um elevado volume de capital deixa aplicado em alguma coisa bastante líquida, bastante segura e que efetivamente não dá trabalho nenhum, até resolver investir em algum negócio, aí vai querer saber quanto o negócio irá dar de rentabilidade. No mínimo o que se quer é que ele cubra aquilo que você já tem garantindo na aplicação. A segunda parte é mais complicada, porque para ganhar 6% ao ano eu fico no Tesouro Direto, porque não me dá trabalho, tem liquidez e não tem risco, é muito mais confortável para mim.
E COMO FUNCIONA ESSE CÁLCULO NA OPERAÇÃO DE ÔNIBUS COLETIVO?
Já a operação de ônibus é complicada, é preciso conversar sobre quanto se tem de adicional de remuneração exatamente porque trata-se de uma operação arriscada e muito trabalhosa. Com isso, é feito essa conceituação. Primeiro, no que se refere à remuneração pelo capital, isso é um custo de oportunidade. Todo o capital que está empregando dentro da operação será remunerado pelo custo de oportunidade, pela taxa livre de risco. Quanto se ganharia se o seu dinheiro estivesse aplicado no Tesouro Direto? Algo em torno de 9%, por exemplo. Então, esse percentual é a remuneração de capital. Do outro lado, se tem uma taxa de remuneração pelo serviço ou uma taxa de lucro que está diretamente ligada ao risco associado à prestação do serviço. Então, pegamos o conceito tradicional usado na infraestrutura no primeiro momento, que é o lucro a receber pelo custo de oportunidade, mais a remuneração pelo risco, e separamos em duas contas diferentes dentro da nova planilha.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE OS CÁLCULOS DA ANTIGA PLANILHA E O SUGERIDO NA NOVA PLANILHA PARA REMUNERAÇÃO DO SERVIÇO?
Existem duas diferenças fundamentais. Na primeira, era considerado praticamente como base de remuneração só o veículo. Eram desconsiderados outros investimentos que são importantes para as prestadoras de serviço, como a aplicação de recursos em garagens, benfeitorias, maquinários, tecnologia embarcada - que é muito importante hoje em dia -, e outros. O que foi feito nessa revisão foi a consideração correta de todos os investimentos que, efetivamente, são realizados pelas empresas operadoras de transporte público. Com isso, muda a base de incidência. A segunda mudança é que antes se adotava de forma padronizada a taxa de 12% de remuneração ao ano. A recomendação feita foi a separação daquilo que é a remuneração livre de risco do capital ou remuneração pura do capital. Agora ela passa a ser feita pela taxa Selic menos a metade da média de inflação de um ano (inflação dividido por dois). Essa mudança é bastante importante. A parcela de remuneração pelo risco passa a incidir sobre o custo total de prestação dos serviços e tem por base os riscos que são incorridos pela empresa operadora.
ESSE PERCENTUAL DA TAXA DE REMUNERAÇÃO PODE VARIAR?
Pode e varia por uma série de condições. Pela localidade, pelos perfis de contrato e de negócio. No caso do perfil do contrato ocorre de acordo com a alocação dos riscos para a empresa operadora, se é todo o risco ou se é um contrato que compartilha os riscos entre o poder público e a empresa operadora. Já em relação à característica do negócio varia se o contrato prevê muito investimento em tecnologias que não são plenamente dominadas pelo mercado, se envolve investimentos em artigos públicos como, por exemplo, terminais, e outras coisas do gênero.
É COMUM INCLUIR OS RISCOS DE UMA OPERAÇÃO NOS CUSTOS DO SERVIÇO?
Em projetos em que você tem muito capital intensivo, jogar o risco como alguma coisa que incide sobre o capital que foi investido é algo que faz muito sentido e essa é uma tradição que vem sendo adotada em órgãos de controle e na própria academia. O grande problema disso é na hora que se tenta transpor essa teoria para alguma coisa que tem pouco capital e muito trabalho intensivo. No caso da prestação do serviço de transporte público de passageiros o que importa é a operação, não o investimento. Então, o risco não incide sobre a parcela de capital investido que é muito pequena, de 10% a 14%, eventualmente, do seu custo total. Ela incide sobre a operação toda, sobre combustível, mão de obra, enfim, sobre todos os custos. Então, é preciso rever esse prêmio pelo risco e não colocar como um adicional de remuneração sobre o capital, mas como um adicional de remuneração sobre o serviço que você presta. A partir daí, começamos a entrar numa conversa que, academicamente, é muito mais consistente, é muito mais honesta em dizer “aqui eu sei exatamente qual é o risco que eu estou correndo e como estou sendo remunerado por esse risco”.
DESTA FORMA É POSSÍVEL TER MAIS TRANSPARÊNCIA ENTRE O CUSTO DE OPERAÇÃO E A REMUNERAÇÃO E O LUCRO DAS EMPRESAS?
Sim, esse método traz uma transparência fora de série, como um todo, que era o objetivo colocado em 2013. Não é um processo simples, isso aqui é muito mais complicado do que da forma como era feito antes, mas é muito mais justo, mais correto, muito mais transparente.
QUAL O PRINCIPAL OBJETIVO EM SE IDENTIFICAR OS RISCOS DE UMA OPERAÇÃO?
A ideia de se fazer uma matriz de riscos começa com uma matriz qualitativa, identificando quais são as principais categorias de riscos incorridas pelas empresas. É justificar quanto a empresa tem que contingenciar de verbas para quando um risco ocorrer ela não quebrar. Por exemplo: queimam 1 ônibus a cada 100 a cada 5 anos, excelente. Então a empesa vai colocar um adicional de 0,2 % da tarifa para contingenciar aquele risco. Vamos supor que durante 9 dos 10 anos ela não utilizou aquela verba, significa que está recebendo um adicional de tarifa que só está acumulando. No entanto, pode acontecer que num determinado ano ocorra queima de ônibus e a empresa vai acabar usando a verba inteira para compensar a perda. Então, de certa forma se cria operações ou contingências que tendem a equilibrar o que vai acontecer ao longo do prazo de 5 ou 10 anos de um contrato.
E COMO SE CHEGOU À MATRIZ COM 17 RISCOS APRESENTADOS NA NOVA PLANILHA TARIFÁRIA PROPOSTA PELA ANTP?
Quando olhamos uma matriz de riscos temos duas fontes de dados relevantes para apoiar. Alguns dados estatísticos e alguns dados com opiniões de especialistas. Os únicos dados estatísticos relevantes que achamos para esse trabalho foram dados produzidos pela NTU, como os de perda de demanda que aconteceram no país de forma agregada nos últimos 10 anos, que são extremamente expressivos. Aquilo que não foi por compilação de dados, foi por opinião de especialistas.
QUAIS PERIGOS AS EMPRESAS CORREM SE NÃO TIVEREM ESSA MATRIZ DE RISCOS DEFINIDA EM CONTRATO?
Se a empresa não tiver um contrato que tenha uma cláusula com cobertura de riscos de demanda, por exemplo, sabe-se que ela está entrando em um contrato para perder dinheiro a médio prazo, já que, de acordo com a série histórica, a perda de passageiros é constante. Então, é importante que a empresa contingencie essa perda. Outro exemplo: quantos os contratos que entraram em quebra contratual por ação de órgão de controle ou por eventos políticos – e esse é um risco que, efetivamente, acontece no Brasil –, quanto é a perda que a empresa tem quando isso ocorre com o seu contrato? Qual o valor que é preciso contingenciar?
ENTÃO É IMPORTANTE QUE AS EMPRESAS TAMBÉM FAÇAM O ACOMPANHAMENTO E UM HISTÓRICO DESSES RISCOS?
Sem dúvida! É algo que já tem sido feito pela NTU em várias localidades. E uma das recomendações feitas pela NTU, inclusive muito importante, é que as empresas não só leiam e reinterpretem as planilhas tarifárias como estão sendo propostas hoje, mas que elas formem uma base de dados para a memória, para identificar exatamente quais são os eventos que podem ter ocorrido e que não estavam previstos no contrato original e que, eventualmente, podem desviar o resultado daquilo que esperavam ter e que não estavam contemplados numa margem de contingência. Hoje, a construção da memória é o ponto chave para que as empresas tenham argumentos para rever suas posições contratuais.
COMO O NOVO MÉTODO CONTRIBUI PARA O PODER PÚBLICO?
A nova planilha permite que ele tome decisões em relação ao perfil contratual porque, atualmente, existe uma percepção equivocada que se pode alocar todos os riscos de um contrato à iniciativa privada a custo zero. Ou seja, o risco é transferido para a empresa operadora que, por sua vez, é obrigada absorver esses riscos sem ter qualquer forma de compensação, só por ter um contrato firmado com o poder público. Veja, se a empresa privada absorve o risco a preço zero, significa que, no médio prazo, essa empresa tem a probabilidade muito grande de ir à falência, de ter que descontinuar os serviços, ter que voltar atrás na questão contratual ou ter que rediscutir o contrato com o gestor público. Não existe como passar riscos para a iniciativa privada a preço zero. Com essa planilha, o gestor público pode enxergar o quanto custa transferir riscos à iniciativa privada porque cada risco não previsto no contrato é um risco que deveria estar incorporado à taxa de remuneração pelos serviços. Ele pode começar a desenhar contratos que são muito mais eficientes que os contratos que existem hoje. Contratos, por exemplo, como os que existem na Inglaterra, no Canadá, que são muito mais sofisticados, na tentativa de achar um modelo que melhor otimize essa relação entre o risco que é passado para o privado e a tarifa ou o preço que ele tem que receber em contrapartida.
EXISTE ALGUMA FORMA DA SOCIEDADE PARTICIPAR DESSE PROCESSO?
Na sociedade civil organizada existem entidades que são importantíssimas para o transporte público, uma delas é a ANTP. Existem também uma parte do poder público, agências reguladoras, empresas operadoras, a academia, a própria imprensa que são extremamente importantes na construção dessa memória. É necessário que todo esse processo se torne o mais transparente possível para que possa existir o debate sobre o quanto se está interessado em pagar pelo serviço prestado e quais são os riscos que podem ser atribuídos à iniciativa privada.
PERFIL
FERNANDO FLEURY é doutor em Administração pela Universidade de São Paulo, mestre em Economia de Empresas pela Fundação Getúlio Varga e mestre em Administração pela Universidade de São Paulo, bacharel em Economia pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado em matemática no Instituto de Matemática Pura e Aplicada e direito pela Universidade de São Paulo. Atuou como supervisor de Projetos pela International Financial Corporation, IFC, e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Professor da FIA e coordenador do curso de Project Finance da ABDIB. É sócio-diretor da Almeida & Fleury Project Finance and Business Development e Almeida & Fleury North America Infrastructure, empresas de consultoria dedicadas ao desenvolvimento e financiamento de projetos em infraestrutura com ênfase em transporte público de passageiros, rodovias, ferrovias, geração de energia, água e saneamento com sede no Brasil, América do Norte e África do Sul.
Entrevista publicada na revista NTU Urbano edição novembro/dezembro 2017