A CORRIDA ELEITORAL (e a maratona para recuperar o transporte público)
28/09/2018 | Geral
Com o fim da Copa do Mundo de 2018, os olhares se voltaram completamente para o outro grande evento do ano: as eleições. Mas, se no primeiro a derrota do Brasil foi sentida apenas pelos fãs de futebol, no segundo não há meio termo: o resultado gera, necessariamente, impactos na vida de todos os 208 milhões de brasileiros. E o País está a menos de dois meses de conhecer seus representantes nos governos estaduais, nos Legislativos federal, estaduais e distrital e na Presidência da República.
Preocupada com a possibilidade de ver o transporte público fora da pauta dos candidatos ao Planalto, como tem ocorrido há quase três décadas, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos tornou pública, durante a 32ª edição do Seminário Nacional NTU, a Carta às Candidaturas Eleitorais 2018. O documento, entregue aos formuladores dos planos de governo ou coordenadores de campanha de todos os presidenciáveis, apresenta uma bandeira única que une o segmento – Por um transporte público com qualidade, transparência e preços acessíveis aos passageiros –, alcançável por meio da implementação de seis programas, que incluem propostas e metas para o transporte coletivo.
A carta foi construída a várias mãos no âmbito do Grupo de Estudos Estratégicos da NTU – grupo formado por conselheiros e membros da entidade, empresários, representantes de associações de empresas de transporte e de sindicatos, além de parceiros externos –, criado em setembro de 2017. Meses de reuniões na NTU e a experiência de 1.800 empresas concessionárias que operam em 2.901 municípios (IBGE, 2018) levaram a um diagnóstico com os desafios do setor e ações que podem ajudar a superá-los.
Considerados os pontos mais sensíveis por especialistas e pela própria população, os programas atacam a crise vivida pelo setor e apontam caminhos que podem ser percorridos no prazo de um mandato presidencial, na avaliação do presidente executivo da NTU, Otávio Cunha: “Quando formulamos os programas, incluímos metas possíveis de atingir em quatro anos. A arrecadação maior é do governo federal. Sobra muito pouco para os municípios investirem. Portanto, lançar projetos para cumprir esses programas está dentro da atribuição federal, que tem força e recursos para executar”.
Mas, para isso, é necessário vontade política. Sob o tema “Construindo hoje o novo amanhã: contribuições do transporte público para a mobilidade urbana”, o Seminário Nacional NTU alertou para a importância do assunto, já que 80% da população brasileira estão nas cidades e o serviço vai de mal a pior – em 2017, houve perda de 3,6 milhões de passageiros, de acordo com levantamento da NTU. “Precisamos de políticas públicas sérias. Os eixos descritos na carta são urgentes e interligados entre si. Assim, não adianta olhar somente para um e ignorar os demais. Nosso maior desafio é oferecer um transporte público de qualidade, que tem custo elevado, por um preço acessível à população mais carente”, destaca Otávio Cunha.
Qualidade: assunto “pra ontem”
O transporte público é um direito social garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal. O fato, por si só, já deveria ser suficiente para garantir a qualidade do serviço. No entanto, na realidade, o que há é um consenso a respeito de sua ineficiência na prática. Tanto é verdade que o transporte público é considerado pela população o 4º principal problema do país, atrás apenas de segurança, saúde e desemprego, segundo a Pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017, da NTU em parceria com a Confederação Nacional do Transporte (CNT).
Ainda assim, cerca de 50 milhões de cidadãos utilizam o transporte público para se deslocar – 86% deles por meio de ônibus urbanos, em deslocamentos diários. E, cada vez mais, o usuário tem exigido regularidade, eficácia, rapidez e conforto. Como não poderia deixar de ser, o eixo ‘qualidade’ recebe mais destaque na carta, com um total de três programas.
“A carta tem muito em comum com tudo pelo que a ANTP luta há 41 anos. Não por acaso, estamos com a NTU e fazemos trabalhos conjuntos. O investimento em qualificação e confiabilidade do serviço é fundamental e está diretamente relacionado à qualidade de vida da população”, ressalta o presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Ailton Brasiliense.
PRIORIZAÇÃO – Abre o eixo de ‘Qualidade’ o Programa Emergencial de Qualificação da Infraestrutura para o Transporte Público Urbano por Ônibus, que propõe investimentos do governo federal para que as prefeituras priorizem o transporte coletivo, com corredores e faixas exclusivas, fiscalização eletrônica e melhoria dos pontos de parada. Isso tudo por meio de recursos do Orçamento Federal e processos simplificados para liberação por meio do Ministério das Cidades.
A meta é ambiciosa: 10 mil km de corredores e faixas exclusivas para ônibus em 111 cidades com mais de 250 mil habitantes, nos próximos quatro anos, ao custo de R$ 3 bilhões em recursos do Orçamento Geral da União (OGU). No Brasil, há exemplos de sucesso das faixas exclusivas. Em Fortaleza, foram construídos mais de 100 km de pistas, que melhoraram substancialmente a velocidade de circulação dos ônibus e a regularidade da oferta do serviço.
“O mundo todo faz diferente, aplica em transporte público. Aqui, priorizamos o transporte individual, que tem custos socioeconômicos bem maiores. O excesso de automóveis nas vias gera congestionamentos, poluição sonora e ambiental, estresse, falta de qualidade de vida. Os carros e as motos são responsáveis por 66% dos acidentes, que trazem mortes ou ainda grandes prejuízos para a saúde, com milhares de feridos. São muitas consequências que poderiam ser evitadas com investimentos em transporte público”, lamenta Otávio Cunha.
Para o secretário nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, Inácio Bento de Morais Júnior, a carta atinge em cheio o problema do transporte público. “Nós também entendemos que não há como melhorar a mobilidade urbana se não for por meio de uma melhoria profunda no transporte público, para que as pessoas troquem o carro pelo ônibus”, afirma o secretário, que aposta em programas como o Refrota (para renovação e ampliação da frota de ônibus urbanos) e o Avançar Cidades Grupo 2, direcionado a melhorias no transporte público em municípios com mais de 250 mil habitantes.
Entretanto, diante da crise econômica que o Brasil enfrenta, ele teme que o uso de recursos do OGU seja inviável. “Com o déficit primário altíssimo, considero difícil esses investimentos virem do orçamento. O desafio do país é grandioso, monumental. É preciso buscar o controle das contas. Somente isso dará ao governo federal a possibilidade de retomar investimentos”, pondera o secretário.
SERVIÇO PADRÃO - Mas, afinal, como deve ser um transporte público de qualidade? É o que o Programa de Padrões de Qualidade para o Transporte Público Brasileiro pretende responder. A ideia é definir as referências esperadas de um serviço de primeira linha. Disponibilidade da rede, rapidez nas viagens, integração de modais, conforto, redução de emissão de poluentes e atendimento e informação aos passageiros são os principais pontos a considerar.
Dessa forma, a proposta é que seja criado um programa de padrões de qualidade, com capacitação dos colaboradores e dos gestores públicos e privados e um sistema de acompanhamento com metas que possam ser verificadas em pesquisas. As metas são: reduzir a duração das viagens, aumentar a regularidade, atender melhor ao público e disponibilizar informações aos usuários. “As metas são possíveis. Com planejamento, empenho e prioridade, poderemos trazer mais qualidade e eficiência para o transporte público do país”, acredita o presidente da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e prefeito de Campinas (SP), Jonas Donizette.
AGENDA POSITIVA - O terceiro e último item do eixo ‘Qualidade’ é o Programa Transporte Público Brasileiro como Instrumento de Desenvolvimento Social. O objetivo é disseminar o papel do transporte público como direito social e ferramenta de inclusão social, dando maior visibilidade aos seus atributos e aos resultados das ações, de modo a estimular o retorno daqueles que deixaram de utilizar o modal, seja por dificuldades financeiras, seja pela migração para o transporte individual. Faz parte da estratégia aproveitar melhor o espaço dos coletivos para a promoção de campanhas e disseminação de informações educativas e de utilidade pública. Fortalecer o aprendizado e a cidadania por meio de difusão de informações em veículos e terminais também são considerados.
A meta é universalizar o acesso ao transporte público pela redução na tarifa, engajar ao menos 10% dos usuários em campanhas e ações educativas, reforçar a responsabilidade social das empresas do setor e tornar o ambiente do transporte público mais agradável. Campanhas contra o assédio e em favor da segurança viária são alguns dos exemplos possíveis, que já vêm sendo trabalhados nacionalmente pelo setor. Mas o retorno dos passageiros que deixaram de usar o ônibus depende muito de uma nova política tarifária, detalhada no programa 5.
O poder da transparência
Embora tenha apenas um item, o eixo transparência é tão importante quanto urgente. Por isso, o Programa de Transparência para o Transporte Público estabelece que toda cidade ou região metropolitana tenha informações precisas sobre oferta, demanda, receitas e custos. E, claro, que esses dados se tornem públicos. Somente assim será possível a sociedade fazer a relação entre qualidade dos serviços e preços cobrados.
O presidente executivo da NTU reitera que o transporte público é o serviço que mais tem transparência e frisa a urgência de que isso seja usado a favor do setor. “Dá para saber quantos pagam, por meio da bilhetagem eletrônica. Os ônibus são controlados por GPS, então, é possível verificar quantos quilômetros os ônibus rodam e o custo disso. É possível divulgar tudo isso e, assim, chegar às receitas e aos custos do serviço para informar à população”, explica Otávio Cunha.
Para que o programa seja efetivo, o Método de Cálculo dos Custos dos Serviços de Transporte Público por Ônibus (Planilha ANTP) é um aliado essencial, pois permite que qualquer Estado ou Município consiga calcular os custos reais dos serviços. A proposta é que seja criado um programa de transparência com informações claras, capacitação dos operadores e estruturação dos órgãos responsáveis para auditar e fiscalizar. A meta é melhorar o serviço e recuperar a confiança da sociedade.
“Levamos quase quatro anos para concluir a planilha, em um trabalho conjunto. Sempre lutamos para que ela fosse uma realidade e esperamos que, com o apoio de todas as frentes, possamos divulgá-la em todo o País”, diz o otimista presidente da ANTP, Ailton Brasiliense.
Preços acessíveis: anseio de todos
O usuário do transporte público pode não ter ainda todas as informações sobre os bastidores do setor. Mas há algo que já está claro como água: o serviço custa caro e não é bom. Dessa forma, o preço cobrado passou a ser o principal motivo para a queda da demanda. A pesquisa Mobilidade da População Urbana 2017 apurou que 62,9% dos usuários que deixaram de usar os ônibus retornariam caso houvesse redução nos preços.
Em um país onde as políticas de incentivo são somente para automóveis e motos, no qual o custeio do transporte público ainda é feito exclusivamente por meio da tarifa cobrada dos passageiros, o que se pode esperar? Isso sem falar nas gratuidades, que representam 21% do valor da tarifa e são integralmente bancadas pelos usuários pagantes.
“Não basta priorizar os ônibus. Um transporte público de qualidade tem custo elevado, é mais do que o bolso do usuário suporta. Como a população vai pagar? A melhoria do sistema envolve mudar a política atual de financiamento. Custeio por meio da tarifa não funciona mais no Brasil, e nem vai funcionar. Que se coloque na conta de toda a sociedade”, sentencia Otávio Cunha.
Buscar novas fontes de custeio, como já ocorre mundo afora, é o ponto de partida. Recursos orçamentários em todas as esferas de governo; separação entre tarifa pública e tarifa de remuneração; contribuição do transporte individual; desoneração tributária; inclusão das gratuidades nos orçamentos públicos a cargo dos setores beneficiados; criação de um fundo para o transporte; e fortalecimento do vale-transporte são as principais propostas do Programa de Financiamento do Custeio do Transporte Público Coletivo Urbano.
O presidente da FNP garante: uma das principais dificuldades enfrentadas pelos municípios – no passado, no presente e, ao que tudo indica, também no futuro próximo – é o financiamento do transporte público. “Essa é uma bandeira forte da Frente Nacional de Prefeitos. Temos trabalhado pela aprovação da Cide Verde – criação de tributo sobre o combustível para o transporte motorizado individual –, com grande intensidade, desde 2016. Apesar de ainda acreditarmos que é uma alternativa para a mobilidade urbana no país, no cenário atual, em meio à crise dos combustíveis e à consequente greve dos caminhoneiros, ainda é instável para fazermos qualquer previsão”, assume Jonas Donizette.
A meta é que até 50% dos custos do setor sejam cobertos por outras fontes que não a tarifa, para que pelo menos 20% dos usuários que deixaram de usar o serviço tenham condições de retornar.
Já o Programa de Segurança Jurídica dos Contratos, que encerra a carta, tem o objetivo de romper com as práticas de quebra de contratos entre o poder público e as empresas concessionárias, extinguindo o fator político dessa relação.
Para isso, é preciso que os processos de contratação dos serviços sejam debatidos com a sociedade e fechados de forma detalhada, com preservação do equilíbrio econômico do serviço e melhoria da sua gestão, tanto no setor público quanto no privado. Tudo visando tornar a atividade mais segura e atrair investimentos.
Os próximos quatro anos
Agora que a carta foi entregue, cabe às candidatas e candidatos a decisão de incluir o transporte público e, consequentemente, a mobilidade urbana nas suas plataformas eleitorais e planos de governo. O setor seguirá acompanhando e cobrando, na esperança de que o assunto seja conduzido com a seriedade e a urgência que merece. Não há palpites quanto à corrida eleitoral, mas um grande desejo de ver o setor entrar numa nova era.
“A NTU não tem bandeira política. Nossa bandeira é a defesa do transporte público. Por um serviço universal, uma rede contínua e regular a preços módicos. O transporte é capaz de beneficiar a saúde, reduzir os impactos ambientais e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem nas cidades. Então, por que não investir? Se conseguirmos sensibilizar os candidatos em relação a isso, todo o Brasil sairá ganhando”, expõe Otávio Cunha.
Para o secretário nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, a busca por investimentos no setor e o fim da lógica perversa do financiamento da operação por meio da tarifa são as propostas mais urgentes. “Existe a ideia equivocada de que as empresas operadoras ganham muito e que a tarifa é alta por causa disso. A planilha, mais aberta e transparente, para que a população possa cobrar, é muito importante. E havendo disponibilidade de recursos, é importante que eles sejam direcionados ao transporte público”, afirma Inácio Bento de Morais Júnior.
Já o presidente da ANTP comemora a elaboração e divulgação da carta. “Ela é muito feliz, traz questões urgentes. Espero que presidentes, governadores e prefeitos tomem juízo. Estamos pagando um custo muito alto, não podemos nos dar ao luxo. Atualmente, a tarifa é o triplo do que deveria, e a troco de quê, com tantas outras formas de subsídio?”, questiona Ailton Brasiliense.
Para finalizar a discussão, o presidente da FNP revela expectativas positivas quanto ao futuro, mas chama a atenção para outras questões igualmente importantes, como a redistribuição da arrecadação e de atribuições entre a União, estados e municípios. “Um novo mandato sempre é motivo de otimismo para qualquer cidadão que lute pela democracia. No entanto, as eleições não serão a salvação do País. Precisamos trabalhar por uma nova repactuação federativa”, finaliza Jonas Donizette.
*Reportagem publicada na Revista NTUrbano, na edição julho/agosto de 2018.