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O vírus que atropelou o ônibus

09/07/2020 | NTU

Covid-19 se alastra pelo Brasil causando impacto devastador no transporte público coletivo de passageiros

Quando 2020 começou, o setor de transporte público coletivo urbano não imaginava que a crise que já enfrenta há anos seria ainda mais agravada pelo surgimento da pandemia de coronavírus - que gera tantos prejuízos em todos os setores da economia e, pior, ceifa milhares de vidas no Brasil e no mundo. Desde que as medidas restritivas começaram nas primeiras cidades brasileiras e, gradativamente, foram se ampliando, as empresas operadoras do transporte coletivo se depararam com um desafio monumental: como seguir operando esse serviço essencial, de extrema importância para a mobilidade das pessoas - incluindo profissionais de outros serviços essenciais como saúde e segurança -, diante da abrupta queda da demanda, se é a tarifa paga pelo passageiro que basicamente financia o transporte coletivo? 

Levantamento realizado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) revelou a dimensão do impacto da pandemia para o setor: do início da Covid-19 até 30 de abril, 314 cidades tiveram redução de oferta (quantidade de ônibus em circulação) em percentuais variados, sendo que 181 delas tiveram paralização total do serviço. Além disso, houve queda de 80% no número de passageiros transportados na média nacional, sendo que a redução da oferta dos serviços foi inferior à queda da demanda, da ordem de 25% na média em todo o país. Ou seja, o transporte continuou sendo ofertado em volume acima do número de passageiros transportados, o que causou grave desequilíbrio financeiro. Estima-se que os prejuízos gerados chegaram a R$2,5 bilhões mensais em março, caindo ao longo de abril para R$ 1,1 bilhão/mês, segundo cálculos da Associação (saiba mais a respeito desse estudo aqui). Isso porque grande maioria das empresas conseguiu reduzir despesas de pessoal adotando as medidas estabelecidas pela Medida Provisória no 936/2020, aprovada no início de abril. Houve também a adequação parcial da oferta, realizada por poderes concedentes municipais e estaduais, e a volta gradativa das atividades econômicas, que gerou um tímido aumento da demanda. Apesar da redução das perdas, é ainda um prejuízo bilionário.

Para o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, a redução de passageiros gera impacto devastador nas finanças do segmento. “O levantamento traz um recorte da pior crise econômica já enfrentada pelo setor e antecipa o cenário de colapso que se aproxima, conforme a situação das empresas agrava-se em cada município”, afirma. Diferentemente de outros países, onde o transporte público é amplamente subsidiado, no Brasil apenas 11 sistemas de transporte coletivo possuem algum tipo de subsídio público, em sua maioria para custear gratuidades de estudantes, idosos e pessoas com necessidades especiais.

Os dados levantados pela NTU foram reunidos no relatório “Covid-19 e o Transporte Público por Ônibus: Impactos no Setor e Ações Realizadas”, disponível no site da Associação, que incluiu todas as 26 capitais, o Distrito Federal e 14 regiões metropolitanas, além de várias cidades de grande, médio e pequeno porte. Os municípios da amostra reúnem 148,3 milhões de habitantes, respondendo por 70% da população brasileira, e representam 9,6% dos 2.901 municípios que são atendidos por serviço organizado de transporte público por ônibus urbano. Em todo o país são 1.800 empresas que operam uma frota total de 107.000 veículos e geram cerca de 1,8 milhão de empregos diretos e indiretos.

 

DEMISSÕES E SUSPENSÃO DE TRABALHO

Diante do cenário de baixa demanda, custos fixos, despesas a serem pagas e contratos a serem cumpridos, muitas empresas se viram obrigadas a reduzir seu quadro de funcionários. Até o dia 30 de abril tinham sido registradas 1.801 demissões e 7.435 suspensões de contratos trabalhistas em 41 municípios pesquisados, afetando principalmente motoristas e cobradores. Uma empresa de Guarulhos (SP) chegou a declarar o encerramento de suas atividades, enquanto outras duas empresas estão em risco de seguir pelo mesmo caminho. E isso é só o começo. “As medidas de auxílio ao setor serão decisivas para manter o serviço durante e depois da pandemia. Se isso não ocorrer, não sabemos o que vai restar desse transporte”, alerta Otávio Cunha.

Entre as estratégias adotadas pelos operadores para evitar demissões em massa estão férias antecipadas ou a redução de jornada e salários - na maioria dos casos, em torno de 50%. Alguns municípios, como Belo Horizonte (MG) e Goiânia (GO), adotaram a estratégia de parcelamento dos salários. Em outros, como Manaus (AM) e Americana (SP), a opção foi por uma escala de trabalho onde os funcionários se revezam na operação do serviço. No Rio de Janeiro (RJ) houve afastamento sem remuneração e afastamento com redução de salários nas empresas que operam no sistema metropolitano. Em Salvador (BA), a suspensão dos contratos por quatro meses foi aplicada a funcionários recém-contratados e aos aposentados que seguiam na ativa, por serem grupo de risco.

Cidades que adotaram ajustes na oferta registraram reclamações de passageiros em relação a maiores intervalos entre os ônibus e a episódios de superlotação, especialmente nos horários de pico. Tais situações decorrem das determinações dos órgãos gestores locais quanto ao dimensionamento das frotas em operação em função da queda da demanda. Vale lembrar que, segundo recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o distanciamento social continua sendo a medida mais efetiva no controle e redução na disseminação do novo coronavírus.

Para proteger passageiros e trabalhadores do setor, as empresas têm adotado várias medidas no combate a propagação da Covid-19. A principal delas é a intensificação da limpeza e higienização dos ônibus, terminais, estações e pontos de ônibus. Outras medidas incluem a disponibilização de álcool gel para motoristas, cobradores e usuários; o uso de máscaras; a limitação de passageiros a bordo; a circulação com janelas abertas; e a divulgação de informações sobre prevenção à pandemia (Clique aqui e leia mais detalhes na matéria de Boas Práticas)

PROGRAMA EMERGENCIAL TRANSPORTE SOCIAL

O cenário crítico fez com que entidades ligadas ao transporte público coletivo - o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana e a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), juntamente com a NTU -, elaborassem uma proposta conjunta com soluções para salvar o setor.

Surgiu assim o Programa Emergencial Transporte Social, endossado pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e proposto ao governo federal. O Programa consiste na aquisição de créditos eletrônicos de transporte (passagens) pelo poder público, no valor necessário para cobrir o desequilíbrio entre receitas e despesas de cada empresa. Os créditos seriam destinados aos beneficiários de programas sociais federais, como o Bolsa Família e o Auxílio Desemprego. A aquisição seria feita enquanto durasse a crise da Covid-19, assegurando liquidez aos operadores. "Não estamos pedindo auxílio financeiro, mas propondo a venda antecipada do serviço para atender aos mais necessitados. Trata-se de medida emergencial, decisiva para manter a operação do transporte público”, explica Otávio Cunha.

No pleito entregue ao Governo Federal, o apoio seria usado para ajudar a cobrir a folha de pagamento das empresas e a compra de combustível, para evitar que o serviço sofra descontinuidade. Os créditos eletrônicos de viagem adquiridos poderiam ser usados ao longo dos 12 meses seguintes à aquisição, em horários fora do pico, e não perderiam sua validade após esse prazo.

O presidente do Fórum Nacional de Secretários de Mobilidade Urbana, Rodrigo Tortoriello, explica que o programa emergencial proposto “será decisivo para manter a operação mínima do transporte público por ônibus nesse período de crise e garantir pagamento integral dos salários, inclusive os salários dos funcionários com mais de 60 anos, que fazem parte do  grupo de risco e estão sendo afastados temporariamente”.

De acordo com Luis Carlos Néspoli, superintendente da ANTP, “a medida é imprescindível para manter o transporte coletivo, um serviço de natureza essencial, em funcionamento regular durante a pandemia, de forma a transportar trabalhadores de áreas como saúde, segurança, limpeza pública, abastecimento e outras, também essenciais”.

A proposta foi encaminhada ao Ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi informado sobre a dificuldade das empresas em honrar as folhas de pagamento e outros custos diante do desequilíbrio financeiro gerado pela Covid-19. Em resposta, o Ministério da Economia montou um grupo técnico de trabalho com participação da NTU para discutir alternativas. O grupo vem realizando videoconferências regularmente, mas ainda não conseguiu avançar para soluções concretas.

DIÁLOGO COM EXECUTIVO E LEGISLATIVO

Desde o início da crise, a NTU vem alertando o poder público sobre a falta de alinhamento das autoridades municipais e estaduais em relação às medidas restritivas adotadas e a necessidade de políticas em nível nacional para assegurar a oferta do transporte coletivo. Além do Ministério da Economia, a NTU tem mantido contatos regulares com outras instâncias do Governo Federal e do Congresso Nacional.

Ainda em abril, a Associação realizou reunião virtual com o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Na ocasião, Otávio Cunha expôs a grave situação do transporte público por ônibus urbano em função da pandemia e apresentou o Programa Emergencial Transporte Social, solicitando o apoio do ministério para a sua implantação. Rogério Marinho afirmou que seu ministério estava sensível ao pleito do setor e trataria do assunto.

Em entrevista coletiva no dia 29 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu que parte dos recursos do programa Pró-Brasil, para recuperação econômica da crise gerada pelo avanço do novo coronavírus, fosse revertida para o financiamento do transporte público.

“Vamos dar mais dinheiro, realmente. Eram 90 bi (R$ 90 bilhões), vamos dar um pouco mais, 100, 110, 120 (bilhões de reais). Porque não é só a saúde, tem o transporte público. Nós não podemos federalizar o problema do transporte público. O ônibus tem de correr e não tem ninguém andando de ônibus, mas amanhã você precisa ir ao hospital, você deve ser atendido. A população mais pobre precisa ser atendida. O táxi não tá correndo, os ônibus se não correrem também como é que a população vai se mover? Então, é um problema de mobilidade urbana, mas em vez de federalizar o problema, você dá mais dinheiro para os estados e municípios, esse dinheiro desce, ele vai para a saúde, mas vai também para as atividades correlatas” – afirmou Paulo Guedes na ocasião. Mas até o momento os recursos não chegaram ao setor.

Sem muito apoio no âmbito do Executivo Federal até o momento, o setor tem dialogado com o Legislativo e vê crescer o interesse pelo Programa Emergencial Transporte Social no Congresso Nacional. A proposta foi incluída na Medida Provisória Nº 936 por Emenda Aditiva do deputado federal Jerônimo Goergen (PP/RS), mas não foi acatada pelo relator na Câmara. Existem emendas correlatas nas Medidas Provisórias no 944/2020 e 975/2020. Além disso, o senador Marcos Rogério (DEM/RO) apresentou no Senado um Projeto de Lei que visa resguardar o exercício do transporte público rodoviário urbano e semiurbano durante o período de calamidade pública decorrente da Covid-19. O PLS 2025/2020 estabelece o "Programa Emergencial Transporte Social" e é baseado na proposta elaborada pela NTU e entidades parceiras.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional) também encaminhou ofício ao ministro da Economia, Paulo Guedes, solicitando a atuação e os esforços de seu ministério para a aprovação do Programa Transporte Social. A Ordem destaca na comunicação que o transporte é "direito social" consagrado pela Constituição Federal e serviço essencial (art. 30, inciso V), cujo objetivo é contribuir na garantia de outro direito constitucional, ou seja, o direito de ir e vir (art. 5°, inciso XV), sendo que, notadamente, o transporte coletivo urbano figura em destaque nesse contexto.

AÇÕES EM PROL DO TRANSPORTE

Algumas medidas de auxílio estão se concretizando, aqui e ali, nas capitais brasileiras.  Curitiba (PR) sancionou em abril a Lei 15.627, que institui o Regime Emergencial de Operação e Custeio do Transporte Coletivo para enfrentamento econômico e social da emergência pública decorrente da pandemia da Covid-19. Com a nova lei, a Prefeitura irá cobrir parte dos custos com o transporte coletivo, mas manterá apenas uma operação mínima. Assim, pretende reduzir em até 51% o custo do transporte para os cofres públicos. As medidas previstas na lei poderão retroagir no máximo até 16 de março de 2020, data da publicação do Decreto nº 421 que declarou emergência em saúde pública por força da Covid-19, e vigorarão por no máximo três meses (saiba mais lendo aqui a entrevista com o presidente da URBS/Curitiba).

Na mesma linha da capital paranaense segue Vitória (ES), que encaminhou o Projeto de Lei 71/2020 que prevê o pagamento de subsídio ao transporte coletivo municipal da cidade. Além disso, a compra do diesel para ônibus está sendo feita diretamente junto à Petrobras, ficando a retirada a cargo das empresas. Também houve retirada dos cobradores do sistema e supressão das projeções de investimentos no serviço. “Agora, o sistema opera com R$ 15 milhões de subsídio e atende à demanda atual”, informou Fábio Damasceno, secretário de Mobilidade e Infraestrutura do Espírito Santo.

Em março o prefeito de São Paulo (SP), Bruno Covas, enviou à Câmara Municipal um projeto de lei com uma série de medidas voltadas a contratos públicos diante do estado de calamidade pública por causa da pandemia. As medidas incluem a possibilidade de subvenções por quatro meses para pagar parte dos salários de trabalhadores do transporte coletivo.

Em abril a prefeitura do Rio de Janeiro (RJ) anunciou que o município vai pagar até R$ 17,5 milhões em combustível para que as concessionárias Transoeste, Transcarioca, Internorte, Intersul e o BRT continuem rodando. O subsídio foi regulamentado por uma portaria da Secretaria Municipal de Transportes e o acordo tem validade de um mês – mas ainda não saiu do papel.

A diretora de mobilidade urbana da Federação das Empresas do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Richele Cabral, analisa a situação do Rio e diz que existe uma falta de sintonia entre os governos; além disso, o transporte público coletivo não está na pauta dos prefeitos, salvo algumas exceções. “O transporte público coletivo no Rio de Janeiro já amarga uma crise há anos, com uma perda de 25% da demanda nos últimos cinco anos e, por causa da pandemia, empresas tiveram que paralisar a operação. Hoje, 40% das linhas estão paralisadas com um prejuízo de 300 milhões de reais/mês e não temos nenhuma expectativa de auxílio”, revelou.

Após parcelarem salários e não terem dinheiro para pagamento de insumos como o óleo diesel, empresas de Goiânia (GO) recorreram, com sucesso, à justiça. O Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros da Região Metropolitana (SET) entrou com pedido de liminar para buscar apoio do poder público na manutenção dos serviços de transporte público coletivo. O pedido foi deferido no dia 22 de abril pelo juiz Átila Naves do Amaral, que determinou na ocasião a obrigatoriedade de o poder concedente apresentar um plano emergencial que contemple o custeio das atividades essenciais das empresas. 

Já a prefeitura de João Pessoa (PB) comprou créditos antecipados de transporte coletivo para evitar demissões de funcionários de empresas do transporte público e garantir o serviço à população após a pandemia da Covid-19, medida adotada também em Belo Horizonte (MG) e Salvador (BA). Para a grande maioria das cidades, porém, segue a incerteza sobre o futuro do transporte público coletivo, especialmente no pós-pandemia. Se nada for feito a tempo, quando tudo passar não restará transporte público organizado e a mobilidade urbana poderá regredir décadas.

 

Matéria publicada na Revista NTUrbano Edição 44, Março/Abril.

 

 

 

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